O site Revista Sociedade Militar publicou como se fosse novidade em maio último um documento da Marinha brasileira de 1958 sobre a ocorrência de OVNIs do caso Ilha da Trindade, mas o documento já era conhecido há quase uma década pela ufologia. [1]

Com o título de “Relatório da Marinha sobre 3 avistamentos de OVNI contradiz reportagem da GLOBO que diz que teria sido armação do fotógrafo, ‘foi visto por uns vinte homens da guarnição’, diz oficial”, a chamada da matéria já comete um equívoco, pois confunde a ocorrência principal que deu fama ao episódio, ocorrida em 16 de janeiro de 1958 a bordo do navio-escola Almirante Saldanha, palco onde o repórter fotográfico baiano Almiro Baraúna (1916–2000) alegou ter batido quatro fotos de uma nave espacial alienígena sobrevoando a ilha, com outra ocorrência de outro dia, de primeiro de janeiro daquele ano, em solo, quando o fotógrafo sequer ainda havia chegado ao arquipélago.

Ou seja, o jornalismo do site Revista Sociedade Militar confunde diferentes ocorrências de aparições de OVNIs de diferentes datas.

Documento já era conhecido desde 2011

O documento apresentado agora como se fosse novidade pelo site Revista Sociedade Militar, um relatório do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade (POIT) assinado pelo capitão de corveta Carlos Alberto Ferreira Bacellar (1924–1980) e comandante do posto da ilha na ocasião, já havia sido obtido pessoalmente por mim em abril de 2011 nas dependências da própria Marinha, no 1º Distrito Naval, na cidade do Rio de Janeiro e publicado em 06 de maio daquele mesmo ano no meu site em um longo artigo com o título de “Caso Ilha da Trindade: documentos sigilosos são revelados“. [2][3]

Eu fui mais além, pois localizei naquela data vários outros relatórios da Marinha do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, de 1957 a 1959, como também o ofício remetido pelo então ministro da Marinha, o almirante de esquadra Antônio Alves Câmara Júnior (1891–1958), ao deputado federal Sérgio Magalhães (1916–1991) (PTB/DF) em resposta ao seu pedido de maiores informações à Armada sobre o episódio, o Requerimento de Informação da Câmara 2957/1958, além de dezenas de fotografias que retratam o trabalho dos militares naquela ilha.

Todo esse extenso material estava enterrado nos arquivos militares por mais de meio século e eu felizmente pude resgatá-lo pela primeira vez, disponibilizando abertamente para download naquele meu artigo citado.

Estes relatórios do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade visavam descrever as atividades militares no arquipélago, e este em específico assinado pelo comandante Bacellar descreve essas observações de OVNIs por civis e militares ocorridos em solo desde 05 de dezembro de 1957 até o último e mais famoso e polêmico, observado a bordo do navio-escola Almirante Saldanha em 16 de janeiro de 1958.

Este relatório do POIT que resgatei — e foi classificado como confidencial à época — pode ser acessado aqui.

Relatório do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade do militar Carlos Bacellar, obtido pelo autor em 2011.
(Foto: Alexandre Borges)

Ainda naquele mesmo mês de maio de 2011, o portal especializado em ufologia Vigília do jornalista Jeferson Martinho também noticiou essa minha descoberta em matéria “Novos documentos reforçam tese de montagem no Caso Trindade”. [4]

Porém, esses documentos oficiais da Marinha não anulam a matéria veiculada pela TV Globo no programa dominical Fantástico de 15 de agosto de 2010, quando apresentou um depoimento de uma amiga do fotógrafo Baraúna, alegando ter ouvido a confissão dele de que as suas quatro fotografias do “disco voador” da Ilha da Trindade eram uma montagem fotográfica por meio da utilização de duas colheres justapostas como modelo de uma nave espacial alienígena. [5][6]

O caso Trindade é um grande quebra-cabeça composto de inúmeras peças e sua análise não se limita a um depoimento isolado de uma única testemunha, como este apresentado pela TV Globo, e nem muito menos deve ser analisado e entendido com visão restrita exclusivamente do depoimento do próprio repórter fotográfico Almiro Baraúna, que é tanto o protagonista quanto o réu do episódio.

Documento oficial não comprova foto do “disco voador”

Estes documentos da Marinha do ano de 1958 não refutam a possibilidade de as fotos serem uma montagem, pois boa parte das ocorrências de OVNIs descritas nele, como por exemplo o episódio referido na matéria do site Revista Sociedade Militar onde “vinte homens da guarnição” disseram ter visto algo no céu, referem-se, como já mencionei acima, a outras incidentes de avistamentos de OVNIs ocorridos em dias anteriores àquele principal de bordo do navio da Marinha.

Ou seja, são ocasiões pregressas em que o fotógrafo Almiro Baraúna sequer ainda havia chegado à ilha.

Quanto ao incidente polêmico ocorrido a bordo do navio, este relatório do comandante do posto da ilha tampouco comprova que as fotografias são autênticas, pois mesmo que consideremos em suma que todos este conjunto de supostos fenômenos aéreos anômalos tenham, de fato, aparecido sobrevoando os céus de Trindade, eles não comprovam per se que aquilo que é visualizado hoje nas quatro fotos seja realmente o registrado nas lentes naquele exato momento.

Mais de 60 anos depois, as fotos de Almiro Baraúna provocam debates até hoje (Foto: Almiro Baraúna)

O fotógrafo Baraúna pode ter criado posteriormente, por exemplo, por meio de uma montagem fotográfica em laboratório um simulacro, uma representação imagética para transmitir a sua sensação e vivência daquilo que supostamente teria realmente surgido nos céus da ilha e ele teria visualizado.

Algo parecido faziam alguns famosos fotógrafos de guerra. Mesmo que a guerra tenha existido, com o objetivo de dar maior realidade do terror vivido no conflito bélico, eles manipulavam algumas fotos, inserindo posteriormente no laboratório fotográfico elementos que originalmente não haviam sido fotografados em uma determinada exposição.

Aliás, ao contrário do que alguns pensam, a própria instituição Marinha oficialmente não autenticou estas fotografias. Em um determinado tipo de análise que fizeram nos negativos, a Armada apenas não conseguiu detectar rastros de trucagem, porém não descartaram a possibilidade de que elas poderiam ser sim uma montagem bem elaborada. [7]

Já publicamos aqui no site vários artigos sobre este polêmico episódio, desde 2002, época em que comecei a investigar este caso. Há vários elementos que tencionam para a linha de que essas fotografias do OVNI sejam uma montagem.

Propagação de fake news

Por não ser um site especializado em ufologia, o Revista Sociedade Militar pode ser perdoado por apresentar material conhecido há quase uma década com as vestes de um achado inédito e de ter confundido e embaralhado aquelas aparições anteriores de OVNIs ocorridas em solo, na ilha — quando o fotógrafo Baraúna ainda não havia chegado ao arquipélago —, com o episódio fatídico ocorrido dias depois no convés do navio, que geraram as polêmicas fotografias.

O que não dá pra abafar são os blogs, sites, revista e canais do YouTube especializados exclusivamente no tema ufológico terem replicado e endossado integralmente e passivamente a matéria do Sociedade Militar.

No entanto, nem todos seguiram a corrente de fake news e devemos creditar aqui que o único site especializado na temática ufológica que corretamente corrigiu essas informações equivocadas foi o portal Vigília do jornalista Jeferson Martinho com a matéria “Caso Ilha de Trindade: documento divulgado por revista não comprova fotos de UFO.” [8]

Referências

[1] Relatório da Marinha sobre 3 avistamentos de OVNI contradiz reportagem da GLOBO que diz que teria sido armação do fotógrafo, “foi visto por uns vinte homens da guarnição”, diz oficial. Revista Sociedade Militar, 11 maio 2020. Disponível em: https://www.sociedademilitar.com.br/2020/05/relatorio-da-marinha-sobre-3-avistamentos-de-ovni-desmente-reportagem-da-globo-que-diz-que-teria-sido-armacao-do-fotografo-foi-visto-por-uns-vinte-homens-da-guarnicao-diz-oficial.html.

[2] BORGES, Alexandre de Carvalho. Caso Ilha da Trindade: documentos sigilosos são revelados. Além da Ciência, 06 maio 2011. Disponível em: https://www.alemdaciencia.com/caso-ilha-da-trindade-documentos-sigilosos-sao-revelados-parte-1.

[3] BACELLAR, Carlos Alberto Ferreira. Relatório de fim de comissão. Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade. Período de de novembro de 1957 a 16 de janeiro de 1958. Marinha do Brasil, fev. 1958.

[4] MARTINHO, Jeferson. Novos documentos reforçam tese de montagem no Caso Trindade. Portal Vigília, 14 maio 2011. Disponível em: https://www.vigilia.com.br/novos-documentos-reforcam-tese-de-montagem-no-caso-trindade.

[5] Família de fotógrafo revela verdade sobre fotos de óvnis em Trindade. G1, 15 ago. 2010. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/familia-de-fotografo-revela-verdade-sobre-fotos-de-ovnis-em-trindade.html.

[6] Aeronáutica divulga procedimentos em caso de aparição de discos voadores. Fantástico. Rio de Janeiro: Globo, 15 ago. 2010. Programa de TV.

[7] BRANDÃO, José Geraldo. Relatório sobre a observação de objetos aéreos não identificados, registrados na Ilha da Trindade, no período compreendido entre 5 de dezembro de 1957 e 16 de janeiro de 1958. Marinha do Brasil, fev. 1958.

[8] MARTINHO, Jeferson. Caso Ilha de Trindade: documento divulgado por revista não comprova fotos de UFO. Portal Vigília, 21 maio 2020. Disponível em: https://www.vigilia.com.br/caso-ilha-de-trindade-documento-divulgado-por-revista-nao-comprova-fotos-de-ufo.

Alexandre de Carvalho Borges
Físico em formação (bacharelando) pela Universidade de Franca, Analista de Tecnologia da Informação pela Universidade Católica do Salvador, pós-graduado em Ensino de Astronomia pela Universidade Cruzeiro do Sul, pós-graduado em Ensino de Física pela Universidade Cruzeiro do Sul, pós-graduado em Perícia Forense de Áudio e Imagem pelo Centro Universitário Uninorte, pós-graduado em Inteligência Artificial em Serviços de Saúde pela Faculdade Unyleya, pós-graduado em Tradução e Interpretação de Textos em Língua Inglesa pela Universidade de Uberaba, e fotógrafo.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui